É mais rápido

Posted: sexta-feira, 14 de maio de 2010 | Postado por Tiago |

Personagem ignota em determinada fita norte-americana disse:


- Sou como a minha mãe. Uso estereótipos, é mais rápido.

Creio que nas sociedades actuais não nascemos com tendência a estereotipar, mas eventualmente acabamos todos como a nossa mãe. Mas não só por ser mais rápido. Até porque o estereótipo não se forma por geração espontânea.

Vejamos a concordância entre o sujeito e o predicado, mas fora do domínio linguístico. Falo de sujeito, pessoa de corpo, e predicado, caracterização quer do seu semblante quer da sua roupagem. Na regras tradicionais da sintaxe, essa concordância é obrigatória. Mas também na vida real ela é altamente aconselhável.

Um artista que parece um artista beneficia-se a ele próprio, desde logo porque vende mais. Mas não só. A cacofonia de cabelos de um violinista que parece ter ponderado o suicídio a cada momento da sua existência chamou-me a atenção num concerto recente. Ali estava ele, o violinista, tal como sempre o imaginei. Tal como o teria estereotipado. O peso da cara dele agravou a gravidade da minha, e também a música soou diferente. E eu pensei que nunca um estereótipo tinha feito tanto por mim, pela minha sensibilidade musical. Olhei para os pêlos eriçados, e pensei na minha mãe.

E este texto não é só sobre pampilhos

Posted: segunda-feira, 10 de maio de 2010 | Postado por Tiago |

O aspecto de empada não se coadunava com a contundência da frase-bomba "prova, isto roça a perfeição". Franzi o sobrolho e dei espaço a nova carga: "é apenas o melhor bolo do mundo". Um "apenas" dito com todas as maiúsculas. E depois pensado por mim a minúsculas de dúvida. Porque evidentemente, homessa!, se provasse o bolo a seguir, a experiência defraudaria as expectativas. Que podia lá ser, que havia bolos melhores, está bem que nem é mau, mas o melhor bolo do mundo?

A verdade é que é o melhor bolo do mundo. E ainda bem que o parágrafo anterior é ficcional. Porque se aquele diálogo tivesse mesmo tido lugar, eu não era capaz de o admitir. Uma epifania não é uma epifania se não tiver semente em mim próprio. Metido na minha vida, num dia normal no café, sem expectativas nem alardes, o pampilho fez-me franzir o sobrolho, mas de mim para mim mesmo. Surrurrou parte do cérebro para a outra: como é possível, esta tão relaxada inconsistência entre o aspecto e o sabor? E a massa? E o recheio? Que descoberta.

Pode ser um cliché dizer que descobrir por nós mesmos não tem comparação. Mas não tem mesmo. E este texto não é só sobre pampilhos.

Se li isto em algum lado, não digo

Posted: segunda-feira, 28 de setembro de 2009 | Postado por Tiago |

"Como costumo dizer, em terra de cegos quem tem um olho é rei." Conheço quem fale assim. "Como costumo dizer, grão a grão enche a galinha o papo." É patético. Eu, que ainda sou novo e nunca provei nada a ninguém, sempre me senti na obrigação de fazer o contrário. De justificar tudo o que digo com o rigor da citação académica. "Li no outro dia no jornal, secção de coscuvilhices do Diário de Fornos de Algodres, que a Maria e o Ricardo andam a frequentar clubes de swing." Em toda a espécie de assunto. E logo depois me arrependia; que fraca economia de esforço; que ninguém quer saber da fonte; que raio. Eu, que ainda sou novo e ainda não provei nada a ninguém, decidi pôr termo a esse tempero de alma.

Se há coisa no processo de socialização que até a contra-gosto nos temos de obrigar a fazer, é passar opiniões de outras como nossas. Não somos assim tão grandes que possamos ter opinião sobre tudo, quando somos constantemente solicitados a isso. Amanhã de manhã posso quebrar o gelo e disparar que o Jorge Jesus é o mestre da pressão alta. E se li isto em algum lado, não digo.

Da astronomia

Posted: segunda-feira, 21 de setembro de 2009 | Postado por Tiago |

Eu não gosto de astronomia. Quer dizer, gosto. Condescendo, movido mais por palpite do que por sondagem, que é matéria que fascina o ser humano, desde onde estou até à enfiada omnidireccional da rosa dos ventos. Mas a astronomia é mais uma arte do que uma ciência, e eu sou um rapaz das ciências. Condescendo de novo: a astronomia tem muito de científico. Só que também tem muito de poético, e misturar as duas coisas não me é indiferente.

Um dia os deuses terrenos puseram os gémeos Castor e Pólux no céu, em duas estrelas reluzentes, para que a sua amizade ficasse marcada eternamente. Isso seria bonito, não fosse essa marca da irmandade épica só fazer sentido num pequeníssimo ponto do Universo: o planeta Terra. O céu tal como o vemos, as constelações tal como nos são apresentadas, não passam de uma conceptualidade que construímos a partir de seres estelares que nada têm que ver entre si: separadas por milhares de anos-luz de distância, nem ao ónus do conhecimento da sua constelação têm direito.

A astronomia é uma efabulação sobre a qual admiramos o céu. É construída sobre um tecido histórico de centenas ou milhares de anos. Sei que apela a pensamentos sobre a vida; outras vidas; distâncias; viagens. O que me lixa nisto tudo é que talvez a Terra seja demasiado pequena para mim. E quando apanhar a próxima aeronave, olhar em volta, ver que nada disto faz sentido, provavelmente vou pensar:

- Porra, estou perdido!